Recebí esta grata colaboração, do amigo Giovanni Ferreira.
O
grande escritor e poeta Manuel Bandeira, quando jovem, passou uma temporada em
Campanha para tratar da saúde. Era o ano 1905. Cinquenta e um anos depois, ele
retornou à cidade, e descreveu a sua visita em uma crônica:
O
Fantasma
27
de junho de 1956
Quando
tomei o trem para Campanha, pensei comigo que se encontrasse por lá alguém
conhecido, ele havia de me tomar por um fantasma. Na verdade, ao chegar à velha
cidade da Princesa da Beira, eu mesmo tive a impressão de ser um fantasma. Desde
a estação encontrei mudanças. Em 1905 havia a estação e, separando esta da
cidade, que fica num morro, um descampado barrento, ande o sal "jaisait rage".
Construíram uma dupla calçada da estação ao morro, à direita plantaram uma
matinha de eucaliptos e à esquerda cavaram um lagozinho, onde a garotada toma
banho. Marchei para o hotel ao pé do morro e quando me vi no quartinho meio
sujo, fiquei meio que arrependido de ter deixado as comodidades do Hotel Silva,
em Cambuquira. Descansei umas duas horas e então subi, muito curioso, a Rua
Direita, que vai dar no Largo da Matriz, hoje Praça D. Ferrão. Verifiquei que eu
era um camelo em 1905. Pois não senti então o que sentia agora: um prazer
delicioso diante das velhas casas coloniais autênticas, quadradas, as quinas dos
telhados com telha em forma de asa de pombo. O Largo também encontrei melhorado.
No meu tempo não havia nada; era um declive nu, com capim junto às calçadas.
Lá
fizeram um passeio de cimento no centro, ladeado de cedros. As casas todas no
mesmo, salvo a novidade de um Teatro Municipal, edifício execrável. Ele e a
matriz reformada estragaram bastante o aspecto genuíno do Largo. A igreja velha
era esse barroquinho pobre e tão simpático que há em toda velha cidade do
Brasil. Reformaram-na, abrindo-lhe janelas em ogivas. Quando me em frente da
casa onde vivi e passei por tantos sofrimentos, senti um nó na garganta. A casa
está igual. Junto, a mesma farmácia. E junto da farmácia, a casa de Donana. Não
quis logo procurar Donana, deixei para depois do jantar. Fui dar os passeinhos
que fazia em 1905. Passei pelos fundos da matriz, desci a Rua do Fogo, onde fica
a segunda casa onde morei. A primeira era térrea, esta era um sobradão colonial
com cinco janelas de frente e nove de lado! Com grande quintal atrás e
mangueiras e outras árvores. Está muito estragada e soube que foi vendida por 12
contos. De novo senti o nó na garganta. Me lembrei de uma porção de coisas,
inclusive de Violinha, uma nossa cachorrinha amarela, que uma manhã amanheceu
morta na escadinha da entrada. Voltei para o hotel, jantei meio horrorizado com
a cara do garçom, que parecia leproso, e logo depois do jantar subi ao Largo.
Havia Via Sacra na matriz, entrei um pouco. Pensei: quantas vezes minha mãe e
minha irmã deviam ter rezado por mim ali! Saí, dei umas voltas pelo Largo e me
dirigi à casa de Donana. Em 1905 Donana era um brotinho, de carinha muito
fresca, muito cor de rosa, e uma dentadura perfeita. Donana mudou bastante, não
tanto, porém, quanto eu temia. Ficou com o "teint tanné" heróico das mães de
família do interior. A dentadura resistiu bravamente, como um reduto. Via-se que
ela se tinha defendido ali. Indaguei de todo o mundo e ela me contou coisas de
minha mãe e de minha irmã, coisas que eu não sabia e que me fizeram bem, como
certos retratos que a gente não conhecia. Quando saí de lá, a cidade estava
deserta e silenciosa, fazia um luar estupendo. Vocês sabem o que é um luar
estupendo no Largo da Matriz de uma cidade do interior? A tal Rua Direita estava
um encanto. Custei a me decidir a entrar no hotel.
A
saída, às 5 da manhã, é que foi uma delícia para o fantasma. A lua ainda ia alta
no céu. O lagozinho artificial com a saparia coaxando, umas neblinas se
rasgando, os eucaliptos, tudo isso no crepúsculo da madrugada formava um quadro
inesquecível.
Às
6:35 o fantasma reencarnou no dia já claro na estação de Cambuquira e foi
diretamente lavar o fígado na fonte magnesiana.
Manuel
Bandeira, Obras Completas, Poesia e Prosa / Volume II
Foto:
Manuel Bandeira em entrevista à revista americana Life. Acervo da
Revista.
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